Cristãos, conservadores, fascistas e fundamentalistas: é preciso distinguir

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Escrito por Fabio Idalino Alves Nogueira, professor de história, e Marcio Roberto Carvalho, historiador



“Partidos políticos, religiosos, em diversos países, interferem no funcionamento do Estado (que deve ser laico) e buscam benefícios que nada tem a ver com a esfera espiritual”, Jaime Pinsky, Historiador da USP.

Quem de nós não se lembra, nos dias da semana, à noite, aos sábados e domingos, nas ruas de qualquer cidade do Brasil, do crente ou evangélico lotando as igrejas com cantos e louvores que adentram até as madrugadas em cultos especiais? Era e é assim até hoje.

O Brasil é considerado a maior nação católica do mundo, mas que nas últimas quatro décadas vem dividindo espaço com as chamadas Igrejas evangélicas, conhecidas também como pentecostais ou neopentecostais. O aumento desse movimento cristão não passaria despercebido, se não fosse a intromissão desses grupos nas decisões de governamentais. A preocupação que fica no ar é: o que eles farão dentro do governo?

Em 2013 a onda conservadora começava a surgir nas manifestações de junho. Ao lado de pautas que afligem toda a sociedade e os vulneráveis. Junto a isso, outras pautas que envolvem os direitos civis estavam sendo questionadas. A partir desse ano, setores ultraconservadores começavam a ser organizar, aliando-se a políticos também ultraconservadores do tipo do atual presidente da República, JMB.

O presidente conseguiu nesse setor religioso “cristão” a base perfeita para a campanha de 2018, para a corrida presidencial. Em verdade que esses “cristãos” foram os mesmos que elegeram os últimos presidentes dos partidos dos trabalhadores. Devido à demonização das esquerdas, patrocinada pela mídia conservadora e “ cristã” tele-evangelista, esses cristãos ficaram desiludidos com os desalinhos da esquerda e a opção foi aderir ao discurso do ódio. Nas eleições de 2018, a bancada da bíblia formou o escrutínio fiel ao atual governo. Fora da câmara federal, há o lobby de pastores para pressionar o congresso a votar medidas conservadoras que poderão estar nos levando ao neo-período medieval europeu.

A relação entre a religião e o Estado é delicada. Onde há trocas de favores, se rompe essa separação, e um fica refém do outro. A religião, no texto representado pelas Igrejas neopentecostais (não todas) e outros grupos conservadores da Igreja católica, passa a promover praticas mútuas, onde um cobra do outro e quando há o rompimento desses interesses ... Há países onde a religião tem mais poder do que o Estado de direito, o Irã e a Arábia Saudita que o digam.

A fundação da República brasileira, em 1889, terminou de vez com essa parceria promíscua. O rompimento não impediu, até os dias atuais, que esses grupos neo-evangelistas interfiram nos resultados eleitorais. Nas últimas três eleições presidenciais, o voto cristão foi o fiel da balança eleitoral.

O sociólogo da religião, Ronaldo Almeida, em seu brilhante artigo "Onda quebrada - evangélicos e conservadorismo", faz algumas considerações importantes sobre o conservadorismo e a pauta conservadora dos evangélicos. Destaca que o conservadorismo não é contrário às normas democráticas, portanto é necessário fazer a distinção entre conservadores, fascistas e fundamentalistas. São termos e categorias comumente usados para atacar e acusar carregando muitas vezes imprecisões generalizantes.

O saudoso Antônio Flávio Pierrucci, já na década de 1990, havia observado o crescimento dos evangélicos na política, bem como as pautas conservadoras que orbitavam os debates políticos naquela época. Fato é que não havia naquele momento uma bancada evangélica tão militante como temos agora no Congresso Nacional, e com isso podemos conjeturar que o propalado conservadorismo não é exclusividade dos evangélicos.

Embora o conservadorismo tenha um verniz religioso, levantando a bandeira da defesa da moral e dos bons costumes, bem como da família tradicional, basta uma olhada não muito aprofundada para constatarmos o fato de que o tal conservadorismo visa a atender interesses de classe bem específicos, portanto nada tem a ver com ensinamentos cristãos. Basta vermos a defesa irrefletida que alguns elementos que se intitulam pastores, como Silas Malafaia, fazem a aquele que ocupa o cargo presidencial: diga-se de passagem que o referido pastor é um burguês ávido por exercer poder não só religioso, mas também econômico e político, haja visto possuir 116 empresas e um patrimônio bem volumoso e no campo da política ser bem próximo ao presidente (foi padrinho de casamento deste). Devemos nos lembrar que o mesmo que vocifera impropérios contra a esquerda e o PT, anteriormente fora apoiador de governos petistas.

Falando em PT é um acinte afirmar que esse partido persegue igrejas ou a religião cristã. O próprio Lula, quando presidente, sancionou a lei que garantiu personalidade jurídica às organizações religiosas, a chamada lei de liberdade religiosa. Sem se falar que foi no governo de Dilma Roussef que a música gospel foi considerada patrimônio cultural, podendo usufruir da Lei Rouanet. Como esses governos perseguiram os cristãos? Muito pelo contrário, a aproximação com a liderança fundamentalista evangélica não foi garantia da fidelidade desses, cujos ventos do oportunismo os guiam como folhas secas caída ao chão. Nem a presença de Dilma na inauguração do Templo de Salomão, do charlatão Edir Macedo, foi a prova que esses terrivelmente evangélicos queriam para constatar que o PT comunista não perseguiu igreja alguma.

Na disputa religiosa entre a Igreja Católica e a protestante, essa última assumiu a vanguarda política. A sociedade mudou, portanto a religião segue o fluxo de tais mudanças. Todavia, não podemos perder de vista que a instituição religiosa (me refiro aos cristãos católicos e protestantes) carrega contradições internas. Basta ver as igrejas da periferia onde a realidade diverge das igrejas dos centros urbanos. A vida é organizada de maneira bem diferente nas favelas e/ou comunidades. A esquerda não pode perder isso de vista antes de fazer qualquer crítica.

Por exemplo, ao lembrar da Reforma protestante, muitos citam o nome de Martinho Lutero e João Calvino, mas se esquecem completamente de Thomaz Muntzer. Thomaz era milenarista e acreditava que as benesses do reino de Deus era para o tempo presente, foi um ardoroso militante nas lutas camponesas por terra, ao contrário de Lutero que a princípio se omitia, mas depois passou a esconjurar e amaldiçoar os camponeses. Lembremos também que o referido reformador (Lutero) fora uma das pessoas que Hitler mais admirava ao lado de Richard Vagner. Já Muntzer foi alvo da admiração de alguns importantes nomes do comunismo como Friederick Engels, que dedicou um capítulo inteiro de seu livro As revoluções camponesas do século XVI, e Ernest Bloch lhe dedicou um livro chamado Thomaz Muntzer o teólogo da revolução. É muito incoerente achar que todo cristão é fascista e apoia esse estado de coisas. Não podemos esquecer que Dietrich Bonhoefer era pastor luterano e que aqui no Brasil temos nomes que compõe a esquerda cristã como o Pastor Ariovaldo Ramos e Henrique Vieira.

Há aqueles que são terrivelmente evangélicos como o Doutor Jairinho, que apesar de sua aparência dócil, escondia uma natureza violenta. Mas a fantasia de ovelha no lobo não durou por muito tempo. Um dia o mascarado deixou a máscara em casa. Nesse caso pitoresco, onde uma criança de apenas quatro anos fora vitimada pela violência desse que fora um arauto da moralidade, há alguns fatos que gostaria de destacar.

Primeiro, o nome do indivíduo. Jairinho, diminutivo de Jairo, personagem bíblico que foi até Jesus para que este lhe curasse a filha enferma. Fosse o Jairo da Bíblia, com certeza a sorte do menino assassinado teria sido outra. Se o terrivelmente evangélico parasse para refletir na história de Jesus, ele veria que sempre que as pessoas levavam crianças para que ele as abençoasse, ele não as despedia de sua presença sem receberem um toque carinhoso e abençoador. Ele mesmo repreendeu seus discípulos quando tentaram impedir as crianças de se aproximarem. Jesus, que curou a filha de Jairo, gostava de crianças, que triste ironia.

Em segundo lugar, vemos o nível de alienação ou interesses financeiros de alguns religiosos neste caso em que a cantora Elaine Martins gravou um vídeo pedindo votos para o então candidato. Elaine Martins é ex-integrante da Assembleia de Deus dos Últimos Dias, do pastor Marcos Pereira, o mesmo que ficou um tempo preso acusado de ter abusado sexualmente de algumas fiéis de sua igreja. Essa cantora, ao pedir votos ao candidato Jairinho, evocou a defesa da família contra a ideologia de gênero ensinada nas escolas. Como garantia, afirmou que ele era seu amigo.

Por último, e acredito que mais chocante, foi o fato da mãe do menino Henry não ter tomado as devidas providências para proteger o filho, haja visto ela ter tido ciência de agressões anteriores. O amor ao dinheiro falou mais alto que o amor de mãe.

À guisa de conclusão, penso que não há nada de errado um cristão se enveredar pela política, mas desde que o mesmo consiga compreender que o estado é laico. Isso não se trata de abrir mão da sua fé, mas de respeitar a fé dos outros.

(Escrito por Fabio Idalino Alves Nogueira, professor de história, e Marcio Roberto Carvalho, historiador)

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