Marco Aurélio Viana de Andrade Lima (09/03/1949 – 28/02/2010) Bem antes da tetraplegia , em minhas mais antigas lembranças em v...
Bem antes da tetraplegia,
em minhas mais antigas lembranças em vida, especialmente na chácara
onde viveram meus avós paternos, vô Luiz e vó Gilda, estão as
risadas do meu tio Marco – uma pessoa maravilhosa com todas as
limitações físicas imagináveis e uma mentalidade de criança, mas
que era feliz e puro, sem qualquer maldade no coração. Um entre
nove irmãos e, depois mais um por parte de pai, o tio Marquinho
tinha hidrocefalia. Ele só mexia um dos braços, não enxergava, não
andava, não conseguia fazer quase nada sozinho. Hoje, não por
acaso, olho para mim e vejo algumas semelhanças que vão muito além
do fato de eu também depender de alguém para tudo, desde a hora que
eu acordo e só consigo respirar e abrir os olhos, até a hora de ir
dormir. Mas ainda não sei o real significado disso.
Luiz Vianna de Andrade Lima (22/12/1922 – 01/07/1994)
Anatagilda Soares de Souza Lima (03/11/1925 – 24/01/1994)
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Ainda jovem, apesar das limitações, tio Marquinho tinha um pouco mais de visão e de mobilidade, então se arrastava pra cima e pra baixo. Mais tarde, me lembro que, com o passar dos anos, os meus avós já não podiam carregar o nosso eterno gordo – como era chamado pela penca de sobrinhos e irmãos – para dar banho e cuidar dele como fizeram a vida inteira. Então essa tarefa foi dividida entre alguns irmãos, em especial o meu pai, outrora com o auxílio de funcionários da chácara. Lembro de acompanhar meu velho até o “Cantinho da Vovó”, de tarde, para dar um trato no tio. E essa foi só uma das fases, a que eu vivi com ele. Eu devia ter entre oito e dez, ou 12 anos.
Reunião de primos da família Viana |
Num certo momento, com a morte dos
meus avós, o tio Marco veio morar em casa, onde passou seus últimos
16 anos de vida. Ele faleceu quando tinha 61. Nesse período ficou
mais claro como meu saudoso tio tinha ouvido afiado para música –
ele vivia com um 'radinho' de pilha e tocava um teclado que era só
ele, além de algumas flautas e gaitas. Ele passava o dia sentado na
cadeira de rodas
em frente duma mesinha onde também fazia as refeições, sempre
perto de alguém. Então, além de quando acompanhei o meu pai nos
banhos da tarde, também convivemos diariamente na mesma casa durante
esses anos. Como aprendi a tocar teclado e violão bem cedo, com meu
pai, eu ficava bastante tempo com o meu tio, que adorava o som do
violão. A gente se dava bem.
Família Viana |
A verdade é que eu sempre penso no
tio Marquinho, pois até o nosso gênio é parecido; às vezes,
engraçado e carinhoso, outras, irritado, impaciente. Então é claro
que eu me questiono: “como
posso ter fechado os olhos para isso tudo até hoje?”
Às vezes sinto que há seis anos estou fazendo a mesma coisa que
ele, passando a maior parte do dia sentado na cadeira de rodas em meu
quarto, na frente da mesa do computador, ainda que relutantemente,
consciente ou não. No entanto, meu tio não tinha escolha, não
tinha outra opção. A realidade é essa. Mas e quanto a mim, será
que eu não tenho condições? Eu me sinto cobrado pela vida, por mim
mesmo, na obrigação de fazer diferente e não me entregar, não me
esconder, como eu fiz na maior parte dos dias até então. Não
porque eu quero, mas porque ainda não encontrei outra opção que me
dê força, que me dê gana.
Reclamar das dificuldades da vida,
além de não resolver nada, eu sei, só me afasta das pessoas e de
qualquer oportunidade de socialização. E pior do que eu, que nem
sei o que é passar fome, necessidade ou qualquer outro tipo de
perrengue, estão aqueles que nem água filtrada têm em suas casas,
e outros tantos que não fazem ideia dos direitos da pessoa com deficiência
no que diz respeito aos tratamentos e medicamentos gratuitos,
condução adaptada e muito mais. Quantos não têm estrutura, não
têm família, base alguma? É até egoísmo meu. Eu me sinto no
dever de ser alguém melhor para poder contribuir minimamente com
aqueles que não têm voz, com toda humildade e respeito.
Eu posso lamentar por estar
tetraplégico,
mesmo mexendo muito pouco meus braços, ou aproveitar a sorte que
tive por não ter que respirar por traqueostomia para sempre, como
fiz durante cinco meses numa cama de hospital. Eu posso achar ruim
por ter de acordar de manhã e só conseguir abrir os olhos, sozinho,
e ter que esperar alguém, ou ver como é bom ter uma pessoa que
venha me vestir e me transferir da cama para a cadeira de rodas. Eu
posso reclamar por ter que me deitar com “hora marcada” para
dormir, e não quando me dá vontade, ou agradecer por ter alguém
disposto a me colocar na cama todos os dias. Eu posso achar ruim se,
por acaso, faço xixi ou cocô na calça, afinal eu não tenho
controle, ou achar bom demais ter pessoas que possam vir me limpar e
me ajudar a tomar banho. Posso chorar e me entregar pelas dores
neuropáticas que sinto no meu corpo todos os dias, ou me sentir
muito mais feliz por lembrar: estou tetraplégico, mas podia estar
morto.
Meus pais, minhas irmãs e eu |
Hoje eu agradeço à vida, meus pais, irmãs, madrinha e amigos que estão ao meu lado. Hoje vejo que eu me fechei para o universo, que não me aceitei. Eu me neguei. Sempre me cobrei e não fiz nada para mudar. Só maltratei a mim mesmo. Meu gênio difícil, às vezes descontando nos outros, é reflexo do que faço para mim mesmo, me castigando, me privando de viver. Estou, ainda, superando a tetraplegia. Estou me curando de frustrações, e dominando a difícil maestria de gerir os sentimentos e as emoções que me descontrolam. Nem posso achar que na minha criação não me foi dado suporte para lidar com esse tipo de sentimento, de frustração – todos fizeram seu melhor, e ninguém imagina esse futuro para um filho. Tenho compreendido que nada na vida acontece por acaso. E não existem coisas ruins ou boas, para mim ou você, porque somos isso ou aquilo. As coisas simplesmente são. Elas acontecem como e quando têm que ser. Mas é o modo como encaramos as adversidades que faz a diferença. Se todo mundo tem problemas, limitações, dificuldades, dores e dúvidas, e se cada pessoa tem sua capacidade e nível de evolução, viverá melhor quem levar a vida com leveza, sorriso no rosto e amor, buscando união, independentemente de ter algum tipo de deficiência, seja física, intelectual, sensorial, múltipla ou não – apesar de tantas outras deficiências não aparentes como aqueles defeitos na conduta, moralidade e caráter.
Um caminho para não se vitimizar talvez seja o de estar ciente de que tudo o que acontece aqui é, na
verdade, uma oportunidade para testarmos nossas capacidades mentais,
físicas e emocionais. Entendendo ainda que ninguém passa em nossa
vida por acaso, já que todos deixam sempre algo de si e levam algo
de nós, por que seria diferente com o que está acontecendo na vida
de qualquer outra pessoa, enquanto você lê este artigo? Perceba
que, se eu antes achava que eu não precisava de ninguém, e ninguém
precisava de mim, hoje eu vejo exatamente o contrário. Hoje eu tenho
certeza que preciso de você, assim como você também precisa de
mim.
É abrindo mão daquilo que não nos
faz diferença que damos espaço para resultados surpreendentes de
novas possibilidades. Talvez seja esse mais um caso onde, com amor e
respeito, juntos, em equipe, os resultados sempre serão melhores –
é como eu escrevi aqui, sobre ser “uma
pessoa gostosa de ser cuidada”, no
artigo “Sim, tem que ter amor”. E por isso estou
feliz. Não só por mim. Mas se eu pude entender que não seria nada
nessa vida sem o outro, aquele que devo tratar, no mínimo, como eu
gostaria de ser tratado, qualquer um pode alcançar sucesso no viver,
pois ele está intrinsecamente ligado à capacidade que todo ser
humano tem em se adaptar.
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Texto sensacional!! Emocionante 👏👏👏
ResponderExcluirGraaaande Murilo, parceiro de físio, blog e vida! Obrigado por prestigiar. Abraços,
ExcluirRafael, fiquei muito emocionada com esse artigo maravilhoso. Que saudade do Marco que era uma pessoa linda, pura, sensível como vc. Bjusss
ResponderExcluirRealmente, tio Marquinho era uma delícia de pessoa. Obrigado pelo carinho, Sandra. bjs
ExcluirImpossível não se emocionar com esse texto. Parabéns por todo esse trabalho que está ressoando por aí. Obrigado.
ResponderExcluirMuito obrigado Marcelo. Eu que te agradeço pelo espaço e confiança no meu trabalho! Forte abraço,
ExcluirParabéns pelo texto mano, me emocionei tbm. Conta sempre comigo. Te amo mt... Saudades do tio Marquinho!!!
ResponderExcluirOh TT, irmã linda do coração, vc tbm deve sempre contar com seu mano aqui, bjão. Te amo +
ExcluirNossaaaaaa....sem palavras..sabe aquela sacudida que todos precisam independentemente das limitações que enfrentam....é isso..vc com toda sua limitação sacudiu a mim e a todos que lêem esse brilhamte texto. E eu como uma integrante da Família Vianna só tenho a falar OBRIGADA!!! Parabéns meu lindo!! Nos ajude a nos superar dia a dia....ja sou sua fã...
ResponderExcluirObrigado pelo "brilhante texto". Todos temos algumas coisas para superar. Fico feliz que a dra. tenha gostado, prima linda. bjão
ExcluirOi Rafa, seu depoimento é muito lindo, reconhecer as fraquezas, expô-las e se aceitar faz com que o fardo seja um pouco mais leve. Garra e força para você..
ResponderExcluirQueridíssima Anita, obrigado pela leitura e retorno. Aceitação é a chave. Super beijo.
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