A era dos monólogos desenfreados

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Tenho por hábito não me exceder em meus atos, em eventos cotidianos. Não quero chamar isso de humildade (não deve ser) e essa questão ne...


Tenho por hábito não me exceder em meus atos, em eventos cotidianos. Não quero chamar isso de humildade (não deve ser) e essa questão nem me interessa. O problema é outro.

Em meus relacionamentos diários, alguns obrigatórios e outros por livre escolha, quase sempre me deparo com situações que poderia classificar como extremas. Digo extremas porque as pessoas parecem muito empenhadas em ultrapassar os limites. Parecem viver já no limiar de todas as coisas.


Quem dirige um veículo motorizado, por exemplo, não somente se locomove através de uma máquina, mas corre no limite da pressa, passando por cima das pessoas (sem desejar a morte) e desrespeitando as leis (sem desejar ser multado). Nas relações empregatícias, o bem-estar pessoal fica por cima de tudo, ainda que isso lhe traga dor e desconforto.

Aqueles que costumam discutir política, futebol e religião, não compartilham pensamentos, ideias e sentimentos. Suas palavras ultrapassam seus lábios como quem defende a própria vida, como se estivesse no limiar da morte. Reconhecer-se errado? Jamais. Construir algo junto? Nunca. Somos egoístas.

Não há dúvida: cometo erros com certa frequência. Mas viver no limite extremado de todas as coisas parece-me um excesso para lá de estúpido. Muitas vezes me pergunto: onde aprendemos a viver assim? Por que não entendemos que o meu bem-estar depende obrigatoriamente do bem-estar daqueles que vivem ao meu redor? E quando digo "ao meu redor", refiro-me também ao motorista insano que por nada quase atropela alguém, ao chefe que brada e mente para impor sua vontade (mesmo na posição de chefe), ao enfermeiro que cuida de um idoso e o espanca na solidão de uma casa.

Queria mesmo compreender que limiar é este que nos leva a infringir os bons costumes, as gentilezas, os sorrisos e as caridades. Queria entender por que depositamos tanta energia em dissimulações, mentiras e encenações e abraçamos nossos colegas sem nenhum aperto ou emoção?

Temos tantos discursos de 'bom-mocismo' preparados em nossa língua, tantos conselhos e opiniões. Até mesmo um falso "você precisa de ajuda" disparamos para completar nosso mise en scène, mesmo que em nosso íntimo estejamos gritando "não peça nada, por favor". Vivemos no limiar da morte, cansados demais para viver, empenhados em defender nosso ego e repletos de platitudes para o bem-estar alheio.

Quem sabe se tivéssemos a efêmera oportunidade de conversar com "aquele idiota" que atravessou correndo na frente do meu carro possante, poderíamos entender, de repente, que sua corrida á para salvar alguém. E uma leve pisada no freio de seu poderoso carro também não atrapalharia sua rápida e atribulada ida ao cartório. Quero dizer que você pode ir correndo ao banco sem precisar odiar e atropelar um ser humano que tenha labirintite, por exemplo. Você pode presidir uma instituição ou uma empresa sem sacanear e humilhar ninguém.

Você não sabe de tudo. Ninguém sabe. Mas para cada coisa que não sabemos sempre haverá a fabulosa oportunidade de perguntar. Tente. Converse com seu semelhante, este ser humano de carne e osso que seus olhos miram. Afinal, estamos na era da comunicação e parece que somos incapazes de dialogar. Perdão. Talvez estejamos na era dos monólogos desenfreados de mim, para mim e sobre mim. Perdão.

*Foto publicada no Portal Terra. Cidade de Dresden, Alemanha, na Segunda Guerra Mundial.

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