O surto imposto pela saúde.

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Nos últimos dias fui acometido por fortes dores. Mal consigo andar. No máximo fico deitado após tomar algum remédio. Foi necessário buscar u...

Nos últimos dias fui acometido por fortes dores. Mal consigo andar. No máximo fico deitado após tomar algum remédio. Foi necessário buscar um diagnóstico. Permanecer assim tornara-se impossível. Uma quadra de distância separa minha casa de um hospital. Sete horas da manhã de uma segunda-feira atravessei os portões hospitalares, eu e minha mulher.
Informações nos guiaram até a sala de triagem. Sentado num banco de madeira com uma mochila ao lado, fiquei esperando. Minha mulher, em pé, aguardava a responsável abrir a porta. Uma senhora se aproxima e diz “é sempre assim, ela chega e demora a abrir”. Um mosquito pousa na mochila. Olho para ele e me surpreendo: é o da dengue. Outros tantos voavam ao longo do corredor. Mesmo com dor, prefiro ficar andando para espantar os mosquitos.
A responsável pela triagem abre a porta. Três pacientes entram na sala. Eu e minha mulher estávamos em segundo lugar. A responsável diz “façam silêncio ou não consigo ouvir o que ela diz”, reclamou olhando para nós. A terceira paciente pedia orientação para minha mulher. Diante da recomendação da responsável, ela sai da sala. A primeira paciente é orientada a conseguir papéis que estavam faltando e também sai da sala. Somos chamados e minha mulher vai sentando e perguntando por um clínico geral. “Só atendemos quem sofreu alguma cirurgia”, respondeu. Como não tinha sofrido nenhuma, fomos embora.
No bairro onde moramos existe um PAM (Posto de Atendimento Médico). Pegamos um ônibus (eu não conseguia dirigir e minha mulher não é habilitada) e vinte minutos depois chegamos. No balcão de informações perguntamos pelo clínico geral, mas fomos informados que ele não vem na segunda-feira. Saímos do PAM. Decidimos ir ao hospital público da Barra da Tijuca. Mais um ônibus e vinte minutos, estávamos prontos para pegar outro, para a Barra.
Quarenta minutos depois estávamos na entrada do hospital. “Acompanhantes não podem entrar”, disse o segurança. Minha mulher ficou do lado de fora e entrei só, com a dor aumentando. Fiz uma ficha e segui para a grande sala de espera. Aproximadamente 40 pessoas seriam atendidas antes de mim numa sala à direita. Do lado esquerdo, outra sala tinha um papel colado na porta, no qual se lia “isolamento” escrito a caneta. Médicos com máscaras entravam e saíam da sala, que ficou aberta três vezes. Um paciente, certa hora, levantou e fechou a porta. Ao sentar disse “não quero gripe suína, já estou doente”.
Mais de onze horas da manhã e faltavam quinze pessoas para eu ser atendido, sem contar as que chegaram depois. A médica sai da sala e diz “vamos dar prioridade aos que estão com febre e dor”. Muitos se levantaram, inclusive eu, que já segurava as lágrimas. Forma-se uma fila de frente para a médica. Eu mal conseguia andar e meu lugar na fila foi engolido. Fiquei em fila dupla. A médica perguntava “o que você tem” e muitos respondiam “dor de cabeça”. Eram orientados a sentar novamente. Uma paciente foi orientada a entrar. Eu não agüentava mais ficar em pé e com lágrimas disse “doutora, eu não estou agüentando de dor aqui”, apontando para o local. A médica disse “entre na sala”.
Na pequena sala havia duas mesas, com cerca de dois palmos de distância. Outra médica atendia na mesma sala uma senhora. A moça que entrou antes de mim, sentou numa cadeira. A única que sobrou era a da doutora que me mandou entrar, mas continuava lá fora fazendo triagem da triagem para casos emergenciais. A médica que estava dentro da sala interrompe o atendimento e diz para mim:
- Você tem que esperar lá fora com os outros!
- Foi ela quem me pediu para entrar – respondi.
- Ela quem?
- A médica – expliquei.
Acabada a triagem da triagem, a doutora entra. Atende a primeira paciente e me pede para sentar. Falo sobre a dor. Ela pergunta sobre náuseas, vômitos ou febres. Digo que não sinto nada além da dor. Ela faz um carimbo em meu prontuário e diz que isto significa “prioridade” de atendimento, encaminhando-me para a sala 3. Meu pequeno diálogo com a médica foi choroso, tamanha a dor que sentia.
Agradeço e vou para a fila da sala 3. Mostrei o prontuário para a senhora que organiza as filas dentro da sala de espera. A reação foi imediata quando esta senhora me colocou em primeiro lugar:
- Mas que palhaçada! Faz tempo que estou esperando e você coloca ele na frente de todos.
A organizadora respondeu “prioridade”. O paciente disse “também estou com dores ou você acha que queria estar aqui”. A dor impedia qualquer reação. Passava do meio-dia e a discussão continuou. A médica chama e entro. Explico as dores e a doutora fecha a porta (os pacientes são atendidos de porta aberta). Pede para eu deitar, examina e diz “você está com hérnia”. Pede para eu sentar e continua “vou pedir um hemograma, três chapas de raio-X e medicar você com buscopan, para dor”. Mais um diálogo choroso, pois a dor aumentava. A médica frisou “tome a injeção para a dor e depois faça os exames”.
Estava difícil andar. Caminhei para a medicação. A enfermeira leu o prontuário e disse “primeiro você tem que fazer o raio-X, caso contrário dará problema” - (este momento culminará num surto, horas depois). Sou orientado a seguir bolinhas azuis para chegar na sala de raio-X. No meio do caminho as bolinhas sumiram. Pedi orientação para um segurança que me mandou entrar numa porta dupla, pois ali era a sala de raio-X. Entro e vejo um enorme balcão oval com muitas macas e doentes em volta. Alguns agonizavam, outros dormiam, mas todos estavam deitados. Apenas eu e os enfermeiros em pé. Não havia nenhum raio-X. Peço ajuda para uma enfermeira. Duas se aproximam. A primeira olha meu prontuário e diz que o raio-X não era ali, mas pegou de minha mão o pedido do hemograma e passou para a outra dizendo “enquanto faz o raio-X ela vai preparar seu hemograma”, e me indicou o local correto.
Minha dor estava tão aguda que minha capacidade de pensar havia dormido. Após alguns minutos, chego até na sala. Mais alguns minutos e a atendente aparece. Transcreve meus dados para o computador e pede para aguardar. Mais alguns minutos e outra pessoa chama três pacientes. Eu continuo esperando. Um senhor ao meu lado, com camiseta de certa empresa, pergunta-me se costuma demorar o atendimento. Eu sentia tanta dor que fingi não ter ouvido nada. Continuei olhando para o teto. Não queria falar. Tempos depois, sou chamado junto de dois pacientes.
Faço as chapas de raio-X mas sou recomendado a ficar no lugar. Minutos depois um outro técnico em radiologia, que não era o primeiro, diz que preciso repetir a última. Repetido o procedimento, espero mais alguns minutos e sou liberado para recolocar as roupas. Volto para a recepção para pegar as chapas que estavam prontas, mas não tem ninguém ali. Minutos depois, sentindo a dor latejando, tomo atitude e entro no corredor do raio-X novamente. Encontro com uma mulher de branco e pergunto se ela pode entregar minhas chapas, pois não agüento mais a dor. Ela responde sorrindo “também procuro alguém do setor”.
Volto para a recepção. Minutos depois pego os exames. Vou caminhando para a sala do balcão oval fazer o hemograma e tomar buscopan. Precisava muito de um buscopan composto. Durante as últimas horas também sentia vontade crescente de urinar, mas decidi fazer exames e medicar antes. A esta altura, a dor da hérnia somada a dor de urinar ficava insuportável. Pergunto por um banheiro. Recebo indicação de voltar na sala de raio-X e andar mais um pouco.
Com as chapas e o prontuário em uma das mãos e a outra segurando a hérnia (como se ajudasse a diminuir a dor), chego ao banheiro. Sou impedido de usar por um funcionário que diz “é exclusivo para funcionários”. Não havia placa na porta ou no corredor sinalizando. Mesmo assim, diante de meu estado, resolvo fazer o hemograma e tomar o buscopan. Desisto de urinar.
Na sala de balcão oval sou interpelado por outro segurança, evangélico. Começa a falar da violência do mundo e do quanto precisamos de Jesus: “nós somos as noivas de Cristo”. Eu, alucinado pelas dores, olhava ao redor procurando as enfermeiras que pegaram o papel do hemograma. Minutos depois aparecem. Digo que fiz o raio-X e preciso fazer o hemograma e tomar a medicação. Acreditem ou não, as duas enfermeiras, uma após a outra, dizem que ali não se faz hemograma e nem se aplica buscopan. Era a sala da internação ou algum nome parecido. Não agüentava mais as dores e as situações. Não agüentava mais. Sai andando com mais lágrimas. Elas devem ter rido; não imagino porque me fizeram de idiota. Eu rezava por um buscopan.
Minutos depois cheguei na sala de medicação e dei o prontuário para a enfermeira, a primeira que disse que eu deveria fazer o raio-X primeiro. Sem controlar o choro, pedi para me aplicar o buscopan e fazer o hemograma. Ela respondeu:
- Aqui não se colhe sangue para hemograma. Isso é no laboratório.
De todos os lugares que havia andado no Hospital Lourenço Jorge, o tal laboratório era um lugar que eu ainda não conhecia, não tinha visto. Ainda a chorar, disse “eu não agüento mais, me ajude”. Este não foi meu surto, mas sim o prelúdio dele. A enfermeira disse que me ajudaria colhendo sangue para o hemograma, mas deixou claro que esta não era função dela.
Aplicou o buscopan e colheu meu sangue. Deu em minha mão o vidrinho com meu sangue e pediu para eu entregar no laboratório, que fica depois da sala de raio-X e depois do banheiro que não pude usar. E deveria entregar o pedido do hemograma junto com o sangue. Eu disse que haviam tomado o pedido de mim na sala de balcão oval e sumiram com ele. A enfermeira disse “vai lá e explica isso para a moça do laboratório”.
Ainda sentindo dores, sem urinar e com tontura, visto que o buscopan deixa tonto e exigiria ficar sentado por alguns minutos, chego ao laboratório. Recepção vazia. Logo chega uma senhora e diz que não pode receber o sangue sem o pedido. Começo a chorar novamente. A senhora chama a chefe do setor, repete tudo enquanto eu choro com dor, urina e tontura. Depois de ouvir, a chefe diz “sem o pedido não posso fazer o hemograma. Se o pedido sumiu, volte na médica da sala 3 e peça novo pedido. O hemograma leva duas horas para ficar pronto”. Falido em minha sanidade, passo pelo banheiro que não pude entrar, pela sala de raio-X, pelo salão com balcão oval, pela sala de medicação e vejo a entrada da sala 3, repleta de pessoas em frente. Vou tentando chegar na porta e um rapaz moreno, aquele que fechou a sala de “isolamento” pela manhã, grita:
- Não vai passar na frente, não!
Eu tento dizer que só preciso do... Não consigo terminar de pronunciar a terceira palavra e ele diz:
- Está todo mundo esperando também. Pegue a fila se quiser, espertinho.
Era entre catorze e quinze horas. Não consigo transcrever o que sentia. Fui andando por um corredor com porta de vidro no final. Atravessando-a, se está fora do hospital. Por isso, fica ali um funcionário que não deixa ninguém sair, a não ser que entregue o prontuário com alta. Eu tinha o prontuário, as chapas de raio-X e o vidrinho com meu sangue, mas estava longe de ter alta. Numa distração deste funcionário eu saí. Dei três passos, peguei o celular e liguei para minha mulher, que ainda esperava por mim. Disse que estava do lado de fora. Ela respondeu que tinha me visto e vinha em minha direção. Antes de chegar, comecei a chorar freneticamente, com total descontrole. Este sim, foi meu surto. Não sei por qual motivo, minha voz quase não saía. Mesmo assim, repeti a frase dita antes:
- Eu não agüento mais. Quero ir embora.
Descontrolado e chorando, entreguei o prontuário, o vidrinho com sangue e as chapas de raio-X para ela. Continuei repetindo as frases sem parar. Ela tentou me acalmar. O funcionário distraído apenas olhava. Outra ia passando ali. Minha mulher pediu ajuda e tentou explicar. A funcionária perguntou o que aconteceu e eu disse que sumiram com meu pedido, estava com dor, com vontade de urinar, fome, sede e sei lá o que mais eu disse. Ela nos levou para dentro do hospital. Entrei chorando e dizendo muitas coisas.
Para resumir as próximas horas, esta funcionária entrou na sala 3, pegou outro pedido de hemograma e levou meu sangue para o laboratório. Minha mulher ficou em pé numa fila, pois a médica iria rever meus exames e me encaminhar para o cirurgião geral. Fiquei sentado numa sala na qual pacientes tomam soro, estava descontrolado.
Falamos com o cirurgião e uma estagiária, muito simpáticos. Diagnosticaram minha hérnia. O cirurgião recomendou cirurgia como única opção de tratamento. Deu dois encaminhamentos: um para abrir cadastro no hospital e outro para marcar a cirurgia, num outro setor. Passava das dezoito horas e fomos ao tal setor. Cadastro aberto, porém, o funcionário disse que o hospital estava lotado para cirurgias. Tínhamos de procurar outro hospital para retirar minha hérnia. Voltamos para dentro do hospital e pedimos ajuda, já que o hospital da Barra da Tijuca estava impedido de me operar. Um outro funcionário disse que era mentira, que não estava lotado. Pediu para voltarmos amanhã, quarta-feira, dizendo que irá nos ajudar. Caso eu consiga ser operado, estarei em repouso por 60 dias, e contrariando as recomendações de repouso, escrevi tudo isso. Precisava escrever, dividir esta história toda.
(Nota: todos os fatos relatados são verídicos e aconteceram em 13/07/2009. Gostaria de deixar agradecimento especial aos médicos que me atenderam, pois todos foram excelentes e cordiais.)

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