Qual o papel da imprensa na indústria do fake news?

SHARE:

Em 2016, o Dicionário Oxford elegeu “pós-verdade” como a palavra do ano. De acordo com o próprio dicionário britânico, o verbete signif...


Em 2016, o Dicionário Oxford elegeu “pós-verdade” como a palavra do ano. De acordo com o próprio dicionário britânico, o verbete significa “relativo a ou que denota circunstâncias nas quais fatos objetivos são menos influenciadores na formação da opinião pública do que apelos à emoção ou à crença pessoal”.

Foi para falar sobre isso que jornalistas, diretores de redação e executivos do mercado da comunicação se reuniram nesta terça-feira, 4, em São Paulo, em evento promovido pela Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner). Ao longo da manhã, nomes conhecidos expressaram suas preocupações com o espaço conquistado pelo fake news e apontaram qual o papel da imprensa diante do cenário.

Pós-verdade, pós-fato e o papel da imprensa

Após a abertura do presidente da Aner, Fábio Petrossi Gallo, que chamou a atenção para “catástrofe” já causada pela chamada pós-verdade e a necessidade de reflexão sobre o tema, o jornalista e acadêmico Carlos Eduardo Lins da Silva falou sobre a diferença da palavra do ano e do pós-fato, termo que ele julga mais apropriado nas discussões que envolvem o jornalismo. Para ele, a verdade é grandiosa demais e carrega implicações filosóficas complexas, que estão acima da capacidade jornalística de lidar com as coisas. “Prefiro falar em pós-fato. É menos pretencioso diferenciar o fato da ficção do que a verdade da mentira. E isso não é novo, é uma discussão antiga”, sinalizou.

De acordo com Silva, a novidade é a velocidade, simplicidade e baixo custo com que o “não-fato” se espalha e a criação da indústria do fake news, que é comtemplada nas redes sociais com espaço de publicidade com suas histórias. “Houve a industrialização da falsa notícia, que são remuneradas por seus resultados”.

Ainda que a situação seja vista como delicada, o acadêmico sinaliza que a imprensa não pode se colocar em papel de vítima ao perder audiência e engajamento para fake news. “A pós-verdade vem da descrença da imprensa. Sofremos processo de perda de credibilidade e temos que assumir nossa parcela de responsabilidade nesse cenário. A maior parte das instituições sofre com credibilidade, não é só a imprensa. O grande problema é que demoramos a perceber isso”, comenta.

O jornalista acredita que as bolhas de informação atingem a imprensa e que, agora, o desafio é enorme e não há muitos estudos e pesquisas que expliquem o motivo de as pessoas acreditarem em notícias falsas. Para ele, a saída continua sendo o investimento nas práticas jornalísticas, na checagem de informações e ética para ajudar a sociedade a distinguir o que é ou não fato. Além disso, ele ressalta: as empresas de comunicação precisam ajudar a pesquisa.

“Mesmo nos melhores momentos financeiros, as empresas brasileiras de jornalismo dedicaram recursos para a pesquisa sobre a área. Pedir isso agora é utópico já que as redações mal conseguem sobreviver, mas alerto: é preciso investir em pesquisa e fazer com que a sociedade seja mais bem treinada para saber o que é falso. É importante que se faça esse investimento, ainda que seja difícil dispensar recursos neste momento”.

Caso Trump: uma lição à imprensa

Luiz Felipe Pondé participou do evento e contribuiu com o debate ao apontar sua visão filosófica. Ainda que existam poucos estudos, ele citou o também filósofo Fiódor Dostoiévski e ao falar que o conceito de verdade está diretamente ligado ao poder. “A verdade não existe. O que existe é uma articulação de força. Se verdade é igual a poder, vou divulgar aquilo que é importante para determinado grupo”. Para ele, as pessoas consomem tranquilamente “notícias” e comentários que vão de encontro com sua visão de mundo. Um exemplo claro pode ser visto nas eleições que deram à vitória a Donald Trump, que para Pondé é uma lição para a imprensa.

“Para o jornalismo, a melhor coisa foi Trump ter ganhado as eleições (em 2016, quando venceu a candidata Hillary Clinton). Nos ajuda a pensar como ‘tanto faz’ o que a mídia americana diz. Há anos, essa mídia está de costas para grande parte da população, e Trump percebeu isso e conversou diretamente por meio das redes sociais com a camada que não se sente representada, que vê o jornal The New York Times como elite”, comenta o filósofo, que é colunista do jornal Folha de S. Paulo.

Pondé ressalta que a mesma coisa acontece com a academia e as faculdades, que são palco de intolerância, onde os alunos não podem ler o que querem, pois não é permitido. O filósofo ainda afirma que nada pode se esperar das faculdades, pois elas fazem parte do problema e não da solução. “Grande parte das pessoas que trabalham com conteúdo, sejam acadêmicos ou jornalistas, acreditam que fazem parte de um clero que vai salvar o mundo”, criticou.

É neste ambiente que o palestrante afirmou que, mesmo as pessoas mais inteligentes acabam consumindo fake news, já que aquele conteúdo concorda com seu modo de pensar. “As pessoas não estão preocupadas com o que é verdade. Elas querem vencer a discussão e ponto. A verdade é necessariamente aquilo que concorde com a minha visão de mundo e foi aí que o exército de Trump trabalhou. O que o New York Times publicou no intuito de desmentir Trump não teve influência nos seguidores do político porque essas pessoas não o leem. O jornal é elite, e o Trump conversa com outro público”.

A imprensa na luta contra o crescimento da pós-verdade

O jornalista e acadêmico Eugênio Bucci participou do evento da Aner e apontou como a imprensa pode lutar contra o crescimento da pós-verdade. O painel por ele apresentado ainda falou sobre o impacto da situação na democracia, no que Bucci afirmou que o mundo está em realidade desafiadora. “Não é garantido que a democracia exista”, disse logo ao abrir a conversa.

“O mercado se articula de acordo com o desejo e não com a necessidade. Por isso o Pondé afirma que as pessoas leem o que gostam. Isso acontece porque a lógica do desejo passa a orientar o chamado consumo de notícias, que consumimos assim como um filme, música, game ou item de entretenimento. Consumimos notícias pelo coração, emoção, prazer e cada vez menos pela razão. O desejo orienta o consumo e se o conteúdo é verdadeiro é só um detalhe”, alertou.

A pós-verdade vem se consolidando nos Estados Unidos há anos, principalmente com relação aos temas políticos. Mentir dá lucro e não é nenhuma ofensa dizer que os candidatos aos cargos públicos usam do artifício para ganhar espaço, segundo a visão de Bucci. “(A imprensa) pode e deve ter base confiável de fatos, que todos sabem que são verificáveis e prováveis. Há informações com as quais podemos cobrir o poder e que são comprováveis. A imprensa pode representar uma barreira indispensável contra o crescimento de uma era da pós-verdade”, prevê.

Bucci não acha que o jornalismo, ainda que de qualidade e ético, pode desmontar a indústria da mentira, já que, voluntariamente ou não, os veículos publicam inverdades todos os dias. “Se tivermos o cuidado de demarcar dentro do assunto verdade o é fato possível de verificação, já ajuda. Não dá para garantir que jornalistas individualmente ou redações individuais sejam a garantia de que a verdade prevaleça, mas se nos atentarmos aos fatos teremos avanço contra a pós-verdade”.

O papel do editor de revistas na pós-verdade

O encerramento do evento da Aner foi feito pelo diretor de redação da Revista Época, João Gabriel de Lima. Em breve depoimento, o jornalista afirmou que o papel dos editores de revistas na pós-verdade é continuar promovendo grandes debates. “Atualmente, as redes sociais fazem parte da democracia e, no início, era espaço onde meus amigos colocavam suas opiniões. Além da expressão pessoal, também é usada profissionalmente para luta política e fake news. O que acontece nas redes não é debate”, ressaltou.

Lima afirma que o debate só é possível com fatos, que são oferecidos pela imprensa para que as pessoas possam se posicionar, independentemente de sua opinião. “O papel do editor em um momento de tantas mentiras é oferecer grandes e aprofundadas histórias, personagens e perfis. Vamos trazer os fatos”, encerrou.

O encontro da Aner reuniu, além das fontes citadas, a jornalista Mônica Waldvogel, Marcelo Rech (presidente da Associação Nacional de Jornais), Paulo Tonet (presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão) e Chico Mendonça (jornalista e secretário executivo da Secretaria de Comunicação da Presidência da República).

(Via FNDC)

INFORME: Independente, o Comunica Tudo é mantido por uma única pessoa, com colaborações eventuais. Apoie este projeto: clique nas publicidades ou contribua.

COMMENTS

BLOGGER
Nome

África,1,Anna Poulain,8,Apoemático,19,APPs,18,Arte,32,Arte Digital,22,Artigos próprios,107,Artigos reproduzidos,286,Biografias,3,Cinema,15,Citações,20,coluna S I T T A,5,Consumidor,24,Contos,14,Crônicas,11,Cultura,24,Dados estatísticos,17,Depressão Comunica,15,Diálogos,1,Diego Pignones,44,Digital,4,Documentários,126,Educar,32,Ensaios,15,Entrevistas,45,Fabio Nogueira,54,featured,4,Fotografia,49,Games,4,HQ,20,In Memoriam,5,Informe,1,Jornais,29,Jornalismo Literário,7,Língua Inglesa,1,Língua Portuguesa,26,Literatura,44,Machismo,17,Memórias de minha janela,10,Mídia,1308,Música,134,nota,9,Nota.,223,Notificando,3,Outros Blogs,2,Pablo Pascual García,1,Pensamento e Comunicação,65,Pensamentos tupiniquins,196,Pintura,21,Podcast,5,Poesia,45,Política Carioca,145,Política Internacional,354,Política Nacional,1060,Q tem pra V,99,Rádio/TV,37,Rapidinhas do Sr Comunica,29,Saúde,27,tattoo,5,Teatro,38,Tetraplégicos Unidos,19,Tirinhas,5,Tupi Guarani Nheengatu,8,Viagem,18,Vídeos,73,Web,54,
ltr
item
COMUNICA TUDO: Qual o papel da imprensa na indústria do fake news?
Qual o papel da imprensa na indústria do fake news?
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1pzZFdNdkbE8bEFvUfrDRhSiOjdqbR5K9ropSU5f7F61TVJXf10CAdhf9jikrQVZd5mbPz47KZW0hF8LWTWv3iSCOlhDTXIcf8GXJmHN7ivkuZpKiowm7_52TDFqAuli2HjD-x_ukHQ/s320/fake-news-2127597_960_720.png
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh1pzZFdNdkbE8bEFvUfrDRhSiOjdqbR5K9ropSU5f7F61TVJXf10CAdhf9jikrQVZd5mbPz47KZW0hF8LWTWv3iSCOlhDTXIcf8GXJmHN7ivkuZpKiowm7_52TDFqAuli2HjD-x_ukHQ/s72-c/fake-news-2127597_960_720.png
COMUNICA TUDO
https://comunicatudo.blogspot.com/2017/04/qual-o-papel-da-imprensa-na-industria.html
https://comunicatudo.blogspot.com/
https://comunicatudo.blogspot.com/
https://comunicatudo.blogspot.com/2017/04/qual-o-papel-da-imprensa-na-industria.html
true
4187826622770269860
UTF-8
Loaded All Posts Not found any posts VIEW ALL Readmore Reply Cancel reply Delete By Home PAGES POSTS View All RECOMMENDED FOR YOU LABEL ARCHIVE SEARCH ALL POSTS Not found any post match with your request Back Home Sunday Monday Tuesday Wednesday Thursday Friday Saturday Sun Mon Tue Wed Thu Fri Sat January February March April May June July August September October November December Jan Feb Mar Apr May Jun Jul Aug Sep Oct Nov Dec just now 1 minute ago $$1$$ minutes ago 1 hour ago $$1$$ hours ago Yesterday $$1$$ days ago $$1$$ weeks ago more than 5 weeks ago Followers Follow THIS PREMIUM CONTENT IS LOCKED STEP 1: Share to a social network STEP 2: Click the link on your social network Copy All Code Select All Code All codes were copied to your clipboard Can not copy the codes / texts, please press [CTRL]+[C] (or CMD+C with Mac) to copy Table of Content