‘Vamo pa Lapa’ - documentário retrata a poesia e a mazela do bairro carioca

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Com menos de meia hora de duração e imagens encantadoras, o documentário Vamo lá pa Lapa, produzido por um grupo de graduandos em cinema e...

Com menos de meia hora de duração e imagens encantadoras, o documentário Vamo lá pa Lapa, produzido por um grupo de graduandos em cinema e disponível na internet, consegue unir a obscuridade e a tristeza da marginalização à sinergia própria aos lugares de pertencimento e identificação, pessoais ou coletivos. Não se trata de uma história contada com a “pena da galhofa e a tinta da melancolia”, tal como Machado de Assis, uma vez morador da Lapa, pôde definir o espírito do brasileiro. Mas com os ares de uma inteligência juvenil mal reconhecida pelas gerações anteriores. Marcada pelo desejo de conhecer aquilo que outrora esteve consagrado, se inscreve no mundo a partir de novos olhares.

Do aqueduto aos arcos da Lapa, passando por Madame Satã e uma trilha sonora composta por Pixinguinha, Noel Rosa e Vinicius de Moraes; até os personagens contemporâneos da noite carioca como o compositor da música tema do curta “meia noite na Lapa” e o rapper Marcelo D2, o espectador encontrará um presente tão amplo quanto o tempo de sua própria fermentação, desde o século XVIII.

Em 1968, o ano que não terminou, o escritor Zuenir Ventura falara daquela que para ele teria sido a “última geração literária”. Mais de 40 anos depois, em entrevista à RHBN, o próprio autor recompunha sua opinião: “Hoje, há a internet e isso foi uma mudança revolucionária. O conceito de geração também mudou, não há apenas uma geração, mas muitas tribos, e cada uma se veste de uma maneira, cada uma é quase uma geração”.

Aliar a consciência histórica, lenta promotora de sentimentos de reconhecimento e enraizamento, à capacidade de lidar com a informação rápida, quase instantânea, porém carregada de um progressismo ainda desconhecido das esquerdas políticas parece ser o trunfo inocente do documentário. Conforme completou Zuenir, esta é uma inteligência diferente e desafiadora; contempla a “nostalgia do não vivido” e, ao mesmo tempo, a energia da entrega passional e, talvez, inconsciente, da possibilidade de ação no mundo de hoje. Não há censura ou autocensura, apenas o espaço público tomado, estudado e apropriado de diferentes maneiras por seus cidadãos-personagens.

É o historiador e velho conhecido dos alunos do ensino médio carioca Milton Teixeira quem explica as origens fidalgas da Lapa, homenageada em 1723 com a maior construção do Rio antigo, o Aqueduto da Carioca, que deveria resolver problemas de abastecimento de água na região. O nome “Lapa”, ele explica, sugere a ideia de uma gruta, algo escuro, onde acontecem as coisas proibidas durante o dia. Com o tempo, a convergência dos meios de transporte tornou o local “popular” demais, cheio demais, brasileiro demais, e as elites subiram para Santa Teresa, enquanto o espaço foi sendo ocupado pelos “malandros”.

Em si, uma desqualificação voltada para o “negro, pobre, nordestino, analfabeto, e homossexual” - como afirma o cantor, compositor e ex-morador de rua Seu Jorge - o “malandro” virou mito, música e peça, símbolo de bravura e sofrimento, nunca de dignidade. “Só que ele era vivo, ficou muito forte e jogava capoeira pra caralho”, continua Seu Jorge a respeito de Madame Satã, personagem de um do filmes que mais chocou a plateia carioca em 2002, lançando o ator Lázaro Ramos a fama de que ouvimos falar hoje.

Jogava capoeira com a navalha entre os dedos, cozinheiro, presidiário e ainda pai adotivo, sintetizou durante muito tempo a ira do rejeitado e a coragem que a historia, do alto da sabedoria livresca, costuma ainda atribuir àqueles que ela julga não terem nada a perder.

À versão do cantor se soma a do morador da Lapa que, sem identificação ao longo do documentário, parece encarnar a voz da moralidade das ruas: “Muita gente fala em Madame Satã, tudo bem que ele fazia as bravuras dele lá, mas eu conheci uma pessoa muito menos falada que pra mim era muito mais valente, era o Lionel Galego”. E continua: “Se alguém achar o contrário, eu até peço perdão. Mas no meu entender - porque eu vi, vi os dois. A diferença é que Lionel não era covarde”.

Sem entrar na densa discussão sobre os projetos de reforma dos centros históricos do Rio de Janeiro, tanto de outrora como os atuais, ou nos conflitos relacionados à repressão social, comercialização do espaço público e uso e abuso de drogas facilmente acessíveis na região, o curta aponta para o modo como as “gentes” lidam com aquele espaço. Entre entrevistas e filmagens na madrugada, juntando famosos, gringos e anônimos, é possível ver no rosto, na expressão, na linguagem e na voz de cada um todos esses problemas, de forma quase indizível, porém. Como se o contato, de fato, nos tirasse momentaneamente a capacidade de teorizar, como se a linguagem não desse conta de tudo e a lógica não pudesse bem representar aquelas sensações, emoções, inconscientes, enfim, o indefinido de cada “personagem”.

Se é verdade que a força da história reside em descrever os comportamentos, nesse caso ela falhou; será preciso apenas senti-los.



(Publicado por Revista de História)

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